Segurança privada contratada por milionários de Guarujá, litoral paulista, estaria “apavorando” os caiçaras com a finalidade de “convencê-los” a abandonar ou vender suas moradias, localizadas na Estrada Guarujá-Bertioga, próximas às entradas dos quatro loteamentos de alto padrão. A ordem seria impor obstáculos para que cidadãos comuns não possam acessar as praias mais bonitas de Guarujá. Representantes dos loteamentos negam.
A história começou em 19 último, com a decisão do juiz Gustavo Gonçalves Alvarez, da 3ª Vara
Cível de Guarujá, que pôs em cheque a desculpa que a preservação ambiental é a responsável pela restrição às praias de Guarujá, cercadas por loteamentos de luxo.
Depois, o DL conseguiu o testemunho de um ex-funcionário do Sítio São Pedro, loteamento que se interliga ao Tijucopava e ao Iporanga, denunciando as artimanhas dos endinheirados para não deixar um cidadão comum pisar na areia e tomar banho de mar nas praias “dominadas” por eles. Agora, uma nova peça entra no tabuleiro: a versão dos caiçaras. A reportagem descobriu que os milionários criaram uma espécie de milícia, formada por policiais, encarregada de intimidar as quase 350 famílias que moram às margens da Estrada Guarujá-Bertioga, entre os quilômetros 11 e 22 – via onde estão as portarias dos condomínios.
Conforme apurado, os policiais não têm o menor escrúpulo e seguem com rigor às ordens dos donos de mansões nos loteamentos da conhecida Pérola do Atlântico, que pisam nas constituições estadual e federal, usando uma lei municipal e influência política para aumentar a distância social entre as classes brasileiras.
Durante o dia e, especialmente, entre às 18 e seis horas da manhã, os milicianos – “seguranças” à paisana (sem fardas) e dirigindo carros com adesivos dos loteamentos – saem dos condomínios e circulam pela estrada intimando pescadores artesanais, trabalhadores, donas-de-casa, estudantes e qualquer morador que ouse estar na rua neste período.
Vale lembrar que os caiçaras chegaram bem antes dos loteamentos e hoje resistem à pressão do poder político-econômico. Os depoimentos a seguir são de gente humilde, que há anos mora de forma simples e cheia de limitações em Guarujá. Por segurança, os moradores preferiram não se identificar.
“Eles (milicianos) usam dois carros – uma S-10 cinza e uma Pampa, com símbolos dos condomínios Iporanga, Itaguaíba e Sítio São Pedro. De dia, eles tiram fotos da comunidade, do movimento dos moradores, enfim. São policiais que ainda estão na ativa. À noite, circulam entre a Balsa de Bertioga e o Perequê. Quando olham alguma coisa que acreditam ser estranha, param e intimam o morador. Isso já aconteceu comigo. Eu moro aqui há 29 anos e tive que dar explicação, na frente de minha casa, que estava chegando do trabalho”, afirma um morador.
O rapaz revela que a intimidação é parte de uma estratégia dos condomínios para enfraquecer os moradores e fazê-los desistir de permanecer no bairro. Ele ainda demonstra a audácia do miliciano, após sua atitude ser questionada. “Quando eu disse que ele não tinha poder de polícia e que estava à paisana, ele rebateu: com a farda eu não posso fazer nada. Sem a farda, muita coisa”.
O morador finaliza, garantindo que os milicianos não fazem questão alguma de esconder que trabalham nos condomínios e que também intimidam comerciantes que possuem estabelecimentos ao longo da estrada. “Na reunião da Agenda 21, os responsáveis pelos condomínios confirmaram que os milicianos são para a segurança dos loteamentos”.
Ricos e os políticos
Outro morador garante que o bairro da Cachoeira é habitado por caiçaras, documentalmente, desde 1876, sempre preservando a natureza e comunidade foi reconhecida pela unicipalidade há cerca de seis anos.
Porém, desde a década de 80, quando chegaram os loteamentos, a vida dos moradores só colecionou perdas. “Perdemos um posto médico, duas escolas, transporte público e outros equipamentos públicos. Tudo isso arquitetado entre a direção dos condomínios e os políticos de Guarujá, para dificultar a permanência dos moradores. Hoje, pagamos R$ 10,40 de tarifa para chegar ao centro da Cidade. Essa consciência veio à tona nos moradores depois da criação da associação do bairro”, afirma, garantindo que, anos atrás, alguns moradores chegaram a
ser expulsos de suas casas com uso da força.
Documento jogada política
A reportagem também conseguiu um documento (ver reprodução nesta reportagem), datado no ano de 2000, que demonstra a mobilização política dos loteadores para manter as portarias que inibem o acesso de cidadãos às praias.
Nele, a direção do Iporanga instrui os moradores do loteamento a transferirem os títulos de eleitor para a Cidade. Eles (loteadores) queriam eleger políticos “amigos”, que trabalhariam para preservar seus interesses e garantir as regalias, conquistadas em três anos antes.
Em 1997, por intermédio da Lei 2.567, de autoria do vereador Willian Lancellotti (PV) e promulgada pelo vereador Wanderley Maduro dos Reis, na época do PTN(PV), foram reconhecidas as áreas dos loteamentos como de especial interesse ambiental e de proteção permanente, além de regulamentar as condições de acesso e utilização de praias, vias e logradouros públicos.
Na prática, Lancellotti e Maduro, hoje pré-candidatos a prefeito de Guarujá, entregaram as áreas aos milionários. Na época, eles contaram com o apoio da maioria dos colegas, mas sofreram pressão do Ministério Público que tentou derrubar a lei, alertando sua inconstitucionalidade. A lei permanece até hoje.
Na Pele
Nascida e criada no bairro que margeia a estrada, outra moradora faz questão de relatar o seu drama. Segundo ela, antes dos condomínios, os moradores viviam livres. Ela salienta que o poder dos “ricaços” é tão grande, que eles encontram apoio do Departamento de Estradas e Rodagem (DER), órgão do Estado que deveria protegê-la.
“Se você constrói uma escadinha, o DER derruba. Estamos vivendo como uma caça acuada. Eu sou filha de pescador e não invasora, como dizem. Durante toda a minha vida, nunca o DER agiu desta forma. Eu conversei com um funcionário e ele me garantiu que a ideia é derrubar todas as casas. Eu perguntei se os condomínios também e ele deu risada de canto de boca”, revela.
Outro morador, cuja família está no bairro desde 1935, disse que seu pai, um humilde plantador de banana, foi ameaçado muitas vezes. “Hoje, a pressão por parte dos condomínios é bem maior.
O metro quadrado de terra aqui, na região do Rabo do Dragão, é caro. Um lote de terra (dois mil metros quadrados) chega a custar R$ 5 milhões. Então, toda essa pressão visa o lucro. Existe um parque ecológico aqui que é só fachada. Na verdade, a intenção é juntar todos os condomínios e fechar os acessos”.
O morador completa revelando um fato curioso: “A Serra do Guararú (que compreende toda a região) foi tombada em 1992. Estranhamente, a comunidade ficou dentro do tombamento. Ou seja, não podemos mexer em uma telha. Por outro lado, os loteamentos ficaram fora da área tombada. Todos os dias, entra material de construção nos loteamentos e saem árvores”, denuncia.
Tiros em pescadores
Tirando do Canal de Bertioga seu sustento e de sua família, um pescador de 53 anos de idade faz revelações não menos impressionantes. Segundo ele, filhos de milionários que moram nos loteamentos desfilam com suas lanchas pelo canal ameaçando pescadores.
“Às sextas-feiras, os iates passam pela gente arrancando tudo, destruindo redes e outras coisas. Até tiro já deram contra pescadores. Filho de bacana bêado. Ano passado, tive um grande prejuízo em material de pesca”.
Uma dona-de-casa que mora ao lado do canal explica que a pressão dos donos de loteamento é muito forte. “Tempos atrás, passaram de casa em casa com um papel e queriam nossa assinatura. A pessoa não era da Prefeitura, nem de órgão algum. Dizia apenas que se tratava de uma ordem de despejo. Quem se recusasse a assinar, dizia que um trator iria derrubar as casas. Obrigaram uma menina de 12 anos a assinar. O pessoal dos condomínios costuma falar que a ordem é que até 2015 não pode ter morador nenhum aqui”.
Um comerciante garante que a pressão se estende a todos que possuem imóveis ao longo da estrada. “Eles (loteadores) afirmam que tem dinheiro para comprar todos os imóveis. A ideia é limpar desde o portal do Perequê até a balsa de Bertioga. Quando um comerciante compra material de construção, os milicianos chegam pressionando. O DER também faz esse jogo”.
Condomínios negam milícias
A reportagem tentou ouvir os representantes dos quatro condomínios citados. Porém, apenas o presidente do Conselho da Associação dos Proprietários do Iporanga, o advogado Antonio Ângelo Faragone, se manifestou a respeito do assunto.
Segundo o advogado, não existe milícia alguma e a informação seria mentirosa. “Nós não temos poder de polícia e sabemos da legislação vigente. O que nós temos – os quatro loteamentos, e a Marina Guarujá – é um carro para proteção dos proprietários, que percorre a estrada inteira à noite nos finais de semana e, na temporada, todas às noites, socorrendo os proprietários”, disse, enfatizando que isso é feito em virtude do número de furtos e assaltos.
Faragone disse que foram infrutíferas as reuniões com as autoridades, representantes do Estado, visando implementar segurança. Além disso, o advogado revela que também encaminhou ofícios solicitando segurança e que também não obteve resultado prático.
Acesso à praia
Segundo ele, o acesso é livre às praias cercadas pelos condomínios, mas o número de vagas de
estacionamento é limitado, por determinação da Prefeitura de Guarujá. O Iporanga só possui 108 vagas. “O acesso é controlado só com relação aos automóveis. Como as ruas só têm seis metros de largura, não há condição de mais estacionamentos. O direito de ir e vir do cidadão é preservado. As praias são liberadas, a pé, para qualquer um. De carro é que o acesso é controlado”, disse o advogado.
Ainda sobre restrições, o advogado se mostrou nervoso e disse que a identificação na portaria – nome, documentos, número de placa de veículo e outras – “é apenas uma questão de segurança. Um estado que não te oferece segurança alguma, você tem que ter o mínimo. Por que você (repórter) não se preocupa com estrada, com isso, com aquilo, onde existem problemas maiores?”
Com relação ao horário determinado, o advogado se mostrou ainda mais arredio, principalmente com a possibilidade de visitas noturnas. “Vem fazer o que na praia? Tomar banho de mar à noite? E a minha segurança que o Estado não dá? Eu acho que todos têm o direito de ir à praia de dia. Quantos entram no mar à noite? Se vier um cidadão aqui à noite e quiser ir à praia eu o levo. Se quiser tomar banho à noite, vá no Perequê, na Enseada, lá tem iluminação, tem tudo”, disse Faragone.
Questionado sobre quem deu o direito dos loteadores implantarem regras, o advogado foi direto: “contrato de concessão celebrado com o Município de Guarujá. Lei oriunda da Câmara Municipal”.
Sobre as várias investidas do Ministério Público, do Ibama e da Justiça com relação à preservação ambiental que não estaria sendo respeitada por alguns proprietários, o advogado disse: “Se você quiser saber qual seria do direito correto, seria o Estado, vocês (Imprensa) e outros respeitarem a aprovação do loteamento (Iporanga) com 500 lotes. Não existia, na época, restrição à ocupação de morros, não existia restrição à restinga. Neste País não existe segurança jurídica”.
Depois da entrevista, na saída do loteamento, a reportagem constatou que, se não há restrições à entrada, conforme garantiu o advogado, existe na saída. Ao parar o carro na porta do condomínio, um segurança desavisado perguntou ao repórter fotográfico: “o senhor poderia abrir o portamalas?”. A liberação só foi efetivada após outro segurança, constrangido, o ter alertado, discretamente, que se tratava de um carro de Imprensa.
Direito de ir e vir virou letra morta
Há 30 anos, praias paradisíacas de Guarujá praticamente “pertencem” aos endinheirados do litoral, uma comunidade fechada e bastante protegida. Além de escolher quem pode e quem não pode tomar banho de mar, os “donos das praias” guarujaenses têm influência: todas as ações judiciais que tentaram garantir acesso irrestrito às praias por eles escolhidas aufragaram na mesa de algum juiz.
As quatro praias encobertas pelos condomínios estão localizadas na encosta da serra do Guararu, numa área quatro mil hectares, conhecida como Rabo do Dragão, tombada em 1992 pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, por intermédio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), é também protegida por decreto federal de 1993.
Na conquista de território vale tudo, como criar obstáculos físicos, documentais e até usar o manto da preservação ecológica. Menos seguir a lei mais básica da Nação: a de ir e vir. Algumas praias são designadas como privativas. Outras, exclusiva para hóspedes do hotel e ainda há aquelas de uso restrito ao condomínio.
Criou-se uma série de determinações, nomenclaturas, regras e posturas para encobrir uma espécie de “segregação social”, num Brasil que, reconhecidamente, se caracteriza pela tolerância racial e religiosa, tido com um dos mais democratas do planeta.
Os ricos de plantão fazem de tudo para transformar as leis brasileiras em letra morta. Em não reconhecer que as praias, inclusive as de Guarujá, são consideradas bens públicos de uso comum do povo e que é assegurado o livre acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
Fonte: Diário do Litoral